ALFREDO BOULOS JÚNIOR

História do Novo Mundo 2: as mestiçagens

Carmen Bernand e Serge Gruzinski
Edusp

O trecho a seguir faz parte do livro História do Novo Mundo 2: as mestiçagens, importante obra dos historiadores Carmen Bernand e Serge Gruzinsk.

As mestiçagens

Essa primeira América, dominada pelas possessões espanholas, é o teatro de mestiçagens de uma prodigiosa liberdade. O encontro dos europeus e das sociedades índias provocou primeiramente em toda a extensão do continente americano transformações dos modos de vida. Espontâneos ou impostos pela força, lentos ou precipitados, esses ajustamentos recíprocos nasceram dos choques que a Conquista, o pavor, a incompreensão, o simples contato ou ainda a curiosidade multiplicaram. [...] A desordem que destrói os seres e as tradições engendra por fim novas práticas e novas crenças, algumas das quais acabam por se estabilizar antes de, por sua vez, se transformar. Ligadas às necessidades de adaptação e de sobrevivência, essas formas de mestiçagem constituem a trama das culturas que apareceram no século XVI no continente americano. Esta é uma diferença essencial com a história europeia, e é sem dúvida alguma a razão pela qual a vontade de construir uma outra Europa no Novo Mundo não deu origem a um “caos de duplos”, mas antes, à América.

As mestiçagens americanas são processos irreversíveis [...], não há volta possível a um passado indígena, anterior à irrupção dos europeus [...] Índios aprenderam a economizar, a endividar e se endividar, a receber juros, a garantir, em suma, a manejar a abstração do dinheiro. Foi-lhes preciso plantar [...] açúcar, tabaco, yerba mate, para um mercado exterior, em detrimento de suas culturas alimentares. Outros índios, em número crescente, preferiram o trabalho assalariado às obrigações seculares do tributo e da mita.

Inversamente, os espanhóis do novo mundo se indianizam e até, por vezes, se africanizam à sua revelia. Por mais que as autoridades se insurgissem contra essas mestiçagens [...] e reclamassem a chegada de emigrantes ibéricos, as nutrizes, as escravas, os domésticos, os yanaconas, os mordomos, a arraia-miúda exercem uma influência cotidiana sobre os costumes. Assim nasce uma linguagem que enriquece o castelhano com termos náuatles, guaranis, quíchuas ou maias, cuja entonação é mais suave, mais cantante, mais pausada que a de Castela. Assim aparecem gestos novos, que se tornam tão familiares que ninguém mais lhes presta atenção. Das mestiçagens da vida cotidiana, uma das mais profundas é sempre a da alimentação, cadinho de sabores e de odores incomparáveis, e critério irrefutável de toda identidade. Entre os criollos, a cozinha das mulatas ou das domésticas índias desperta sensações que não lhes trazem mais as tradições culinárias europeias. Mesmo quando o alimento é de origem europeia, como a carne de vaca, sua abundância e seu preço módico lhe dão mais lugar no regime alimentar e modificam a maneira como é preparado. Do mesmo modo que o milho, a mandioca e o chocolate, os entrecostos do Río de la Plata se tornam alimentos da “região”, e portanto a marca de uma nova pertença.

BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo 2: as mestiçagens. São Paulo: Edusp, 2006. p. 723-725.

Habilidades da BNCC

7º ano
(EF07HI09) Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações ameríndias e identificar as formas de resistência.