ALFREDO BOULOS JÚNIOR

Úrsula e outras obras

Maria Firmina dos Reis
Edições Câmara

O texto a seguir é parte da apresentação que o professor Danglei de Castro Pereira, professor de Literatura Brasileira na Universidade de Brasília (UnB), escreveu para o livro Úrsula e outras obras, da escritora Maria Firmina dos Reis.

Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822, em São Luís (MA), e faleceu em 11 de novembro de 1917, na cidade de Guimarães (MA). Negra e bastarda, como ela mesma se definiu, foi professora de primeiras letras na comarca de São José de Guimarães (MA) e procurou a liberdade nas palavras ao produzir obra de forte combate ao período escravista brasileiro.

O foco no tema da espoliação dos menos favorecidos e a construção de uma linguagem detalhista e imagética contribuem para a exposição de uma sociedade fragmentada e repleta de preconceitos. Por meio da descrição de detalhes das senzalas e da problematização dos espaços de convivência entre negros e brancos no século XIX, a autora cria um amplo painel da formação da sociedade brasileira.

Esse marcante tom descritivo aponta tanto o questionamento reflexivo com relação ao período escravocrata, quanto a inquietação face à rigidez da pressão social direcionada à mulher no século XIX. É o caso do tema da marginalidade da mulher branca que, ironicamente, protagoniza o romance Úrsula. [...]

Com a análise da obra de Firmina, é possível verificar sua contribuição para a problematização irônica das relações e das peripécias da protagonista branca de Úrsula na interface com a trajetória da escravidão metaforizada no percurso temático de A escrava – conto que [...] sintetiza essas tensões identitárias. É na fusão dessas trajetórias por vezes contraditórias do branco e do negro que o leitor de Maria Firmina dos Reis encontra a amplitude de seu trabalho. Naturalmente, ela não foi a única voz a tratar da escravidão, do sexismo e do racismo como temas literários no país: o mesmo fizeram, entre tantos outros, Machado de Assis, Castro Alves e, na transição para o século XX, Cruz e Souza e Lima Barreto. Foi, no entanto, uma voz feminina de resistência, e, por isso, a leitura de sua obra contribui para que os leitores encontrem fontes de tensão social na literatura nacional em meados do século XIX.

[...] Os inúmeros personagens que povoam a ficção de Maria Firmina dos Reis explicitam a relação complexa entre brancos e negros na construção etnográfica da sociedade brasileira. Ao focalizar o negro e suas relações étnicas e sociais, a narrativa supera o tom de resignação e apatia e assume uma ambientação sutil e irônica à cultura do outro. A escritora ressalta, assim, o papel fundamental que o sentimento de pertencimento à cultura do negro [...] teve para o lento desenvolvimento da identidade cultural do Brasil escravocrata.

A ideia de que esse pertencimento ao universo afrodescendente não impede a fusão étnica à cultura do outro confere a Firmina local de destaque na historiografia literária nacional. Esse percurso, retomado e ampliado pela voz condoreira de Castro Alves e de Junqueira Freire ou pela contestação irônica de Sousândrade e Machado de Assis, faz de Maria Firmina dos Reis uma das mais relevantes vozes da expressão feminina nos primórdios do século XIX na literatura brasileira.

Esse aspecto já seria suficiente para recolocar em circulação a obra dessa grande autora e justificar a publicação deste livro; mas é sobretudo pela relevância estética de sua linguagem que os leitores [...] precisam conhecer seu trabalho. Trata-se, sem dúvida, de uma das mais importantes escritoras brasileiras de todos os tempos, se não pela complexidade de sua linguagem – como em Adélia Prado, Cora Coralina, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Francisca Júlia, Julia Lopes de Almeida, entre tantos nomes –, pela força de sua literatura, que convida sempre à reflexão face a temas polêmicos como a escravidão, o sexismo e o espaço da mulher em uma sociedade paternalista e escravocrata.

É preciso ter em mente, ainda, que a existência de uma autora como Firmina – mulher, negra e educada – parece ser uma contradição à representação feminina na literatura produzida no país de meados do século XIX. O desafio é pensar como uma escritora tão emblemática continua à margem da tradição literária, mesmo tendo continuamente oferecido “provas de seu talento” ao confrontar, em pleno século XIX, os limites do etnocentrismo escravocrata e ao problematizar o lugar da mulher e do negro em sociedade sexista que ainda mantém reflexos vivos no Brasil atual. Nesse sentido, esta publicação é um importante passo para celebrar essa autora injustiçada pela falta de receptividade do público do qual foi contemporânea e, ao mesmo tempo, tornar suas publicações acessíveis aos jovens leitores.

PEREIRA, Danglei de Castro. Maria Firmina dos Reis: uma voz em conflito. In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula e outras obras. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. p. 7-10.

Habilidade da BNCC

9º ano
(EF09HI04) Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil.