ALFREDO BOULOS JÚNIOR

O debate contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação

Tatiane Consentino Rodrigues e Anete Abramowicz http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022013000100002

O trecho a seguir foi escrito por Tatiane C. Rodrigues e Anete Abramowicz e pertence ao artigo O debate contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação.

Da homogeneidade à diversidade: apropriações da produção brasileira

Na década de 1990, podemos dizer, de maneira geral, que o debate brasileiro em torno da educação sobre cultura centrou-se principalmente nos temas relativos ao currículo, apesar de a temática estar presente na didática, na formação de professores, nas análises sobre e do cotidiano escolar etc. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em um primeiro momento, ao trazerem a pluralidade cultural como tema transversal, criaram um território, um lugar para a contenção dos temas postos na educação. O fracasso escolar, as dificuldades de aprendizagem, as reivindicações sociais por reparação e reconhecimento ficaram circunscritas na cultura e no debate do currículo escolar.

A década de 1990 é considerada uma referência nessa passagem, pois foi marcada por um contexto reivindicatório em que diferentes movimentos sociais denunciaram as práticas discriminatórias presentes na educação e exigiram mudanças, ao mesmo tempo em que erodiram o mito da democracia racial.

Nessa década, sobrepuseram-se uma visão culturalista explicativa do fracasso escolar e certo reconhecimento das diferentes culturas. Identifica-se nela também a influência de um enredo discursivo no contexto mundial, que se integra de modo sistemático às reflexões dos estudiosos da educação. Uma educação voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem emergido em debates e discussões nacionais e internacionais, buscando questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógicas e curriculares de uma educação voltada à valorização da identidade múltipla no âmbito da educação formal.
[...]

A partir da década de 1990, a confluência dos fatores mencionados anteriormente fomenta a produção sobre tais temáticas (educação, cultura, multiculturalismo, interculturalismo etc). De forma geral, após as análises realizadas dos artigos publicados em 23 periódicos durante os anos de 1990 a 2007 e dos 44 trabalhos apresentados nos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação, pode-se afirmar que o debate no Brasil encontra-se entre os multiculturalistas e interculturalistas [...]. Com base na análise dos trabalhos selecionados, é possível elencar alguns pontos comuns, ou pontos de partida, utilizados por um número expressivo de pesquisadores em referência ao processo ou à passagem de uma educação homogênea para uma educação que considera a diversidade.

A ascensão da diversidade na política educacional brasileira

A partir da década de 1990, a referência à diversidade passou a ser cada vez mais presente no contexto político brasileiro, motivada pela pressão internacional de cumprimento dos acordos internacionais de combate às desigualdades raciais, de gênero e outras, bem como por um contexto interno de intensas reivindicações.

O período de 1995-2002 corresponde à gestão de Fernando Henrique Cardoso e caracteriza-se pela consolidação das discussões sobre políticas focais, de combate à discriminação, ao preconceito e ao racismo na esfera pública. No entanto, [...] o país carece de uma estratégia articulada e orgânica de enfrentamento da questão. As ações até então desenvolvidas são caracterizadas como fragmentadas, desordenadas e com baixa resolutividade.

[...] No plano executivo federal, criou-se, ainda em 2003, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), reunindo sob seu domínio um conjunto de ações voltadas para a população afrodescendente, com destaque para a atuação junto a comunidades quilombolas, no campo da saúde da população negra e também na área do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. No mesmo ano, em 9 de janeiro, foi sancionada a Lei nº 10.639, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e introduz a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira na educação básica.

No que diz respeito à educação, em sintonia com as metas e indicações no plano de governo por um tratamento específico a determinados grupos em situação de discriminação no país, especialmente no que diz respeito ao acesso e à permanência na educação, criou-se em 2004, na estrutura do Ministério da Educação, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD).

A SECAD foi construída com a perspectiva de contribuir para essa mudança na política pública: conseguir compatibilizar o conteúdo universal da educação com o conteúdo particularista e diferencialista de ações afirmativas para grupos, regiões e recortes específicos; dar conta, portanto, de colocar no centro da política pública em educação o valor das diferenças e da diversidade, com seus conteúdos étnico-racial, geracional, de pessoas com deficiência, de gênero, de orientação sexual, regional, religioso, cultural e ambiental.
[...]

A criação da SECAD provocou uma alteração institucional no tratamento da diversidade; tal alteração, porém, foi restrita, já que os programas de grande impacto no que diz respeito à dimensão de atendimento e orçamento permaneceram indiferentes, com exceção do Programa Universidade para Todos [PROUNI], que inseriu o recorte étnico-racial na oferta de bolsas para o ensino superior.

Ainda que a criação da SECAD tenha contribuído para a institucionalização de temáticas que até então não eram abordadas na formulação de políticas de educação, notou-se que as compreensões de diversidade ainda são múltiplas e alternam-se de acordo com as Secretarias envolvidas nas formulações dos programas. Em consonância com a avaliação de Moehlecke (2009), a SECAD, diante dos objetivos que lhe foram atribuídos e das pessoas escolhidas para dirigir cada uma de suas coordenações, com fortes vínculos com os movimentos sociais das áreas com as quais trabalham, foi a Secretaria que explicitou mais claramente o entendimento da diversidade a partir de uma visão crítica das políticas de diferença. A SESU, por trabalhar especificamente com o ensino superior, reforçou em seus programas a ideia de diversidade como política de inclusão e/ou ação afirmativa. Já a SEB [Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação], que tem como atribuição formular políticas para toda a educação básica, trabalha em seus documentos e programas principalmente com a ideia de inclusão social e de diferença como valorização e tolerância à diversidade cultural.

O MEC [Ministério da Educação] não tem uma posição única e coesa acerca da ideia de diversidade que possa orientar o conjunto de suas ações. A ideia de diversidade tem servido como um grande conceito guarda-chuva para o governo nos vários processos de negociação com os grupos de pressão.

Assim como nas discussões teóricas que realizamos sobre diversidade, a multiplicidade de apropriações da diversidade expressa as disputas internas e externas ao governo pela definição de projetos educacionais. Essa disputa tornou-se evidente quando incluímos na análise a destinação orçamentária [...] para tais programas e ações; nos anos de 2005 e 2006, o orçamento para essas políticas foi de menos de 1% em relação ao orçamento total do MEC.

No ano de 2005, o orçamento da diversidade representava 0,7% do total do orçamento do MEC. Já em 2006, essa participação passou para 0,75%. Tal evolução representa um aumento de 7% na participação do orçamento da diversidade em relação ao orçamento do MEC. Porém, a porcentagem de participação apresentada enseja uma reflexão noutro sentido. Uma participação de apenas 0,75% sinaliza um valor insignificante em termos orçamentários. As temáticas que pretendem ser contempladas no amplo espectro que se denominou diversidade têm uma participação ínfima em relação ao total do orçamento do MEC: menos de 1%. Isso significa que as questões relativas à diversidade permanecem sem financiamento efetivo para reverter qualquer lógica. Estão contidas apenas em um âmbito discursivo e abstrato de cultura/diversidade/diferença.

Por fim, cabe uma análise da dotação orçamentária no ano inicial e no ano final do primeiro Governo Lula. Vale a pena ressaltar que o primeiro ano ainda representa reflexo do Governo FHC, pois a Lei Orçamentária Anual (LOA) foi feita no Governo anterior. Os dados a seguir demonstram qual foi a variação de 2003 a 2006, em termos reais, do orçamento total do MEC e do orçamento da diversidade.

Participação do orçamento da diversidade em relação ao orçamento do MEC
2003 0,27%
2006 0,75%

Enquanto o orçamento do MEC apresentou uma queda de 2,7% em termos reais, o orçamento da diversidade cresceu 268,7%. Isso demonstra uma mudança de intenção no tratamento da questão da diversidade de um governo para o outro, algo que se esperava em relação ao governo Lula, o qual foi construído com relações estreitas com os movimentos sociais que reivindicavam incremento das políticas públicas voltadas para a questão da diversidade.

Apesar de uma variedade sem precedentes de programas dirigidos ao enfrentamento dos problemas decorrentes do racismo e direcionados para a diversidade, em termos gerais, pode-se afirmar que faltaram coordenação interministerial, coerência e comunicação entre os programas, e que as responsabilidades acabaram encapsuladas na SECAD, na SEPPIR e na SPM. A defesa da diversidade e a luta pela igualdade racial passaram a fazer parte da retórica do governo, mas ainda não foram, efetivamente, elevadas ao status de política de Estado.

Análise semelhante é apresentada por Almeida (2011) no que diz respeito à política nacional de direitos humanos. Segundo o autor, ocorreu um esvaziamento do tema na esfera pública, associado ao predomínio de uma visão economicista de gestão.

Uma das principais apostas era quanto à inserção das 500 ações previstas no II Plano Nacional de Direitos Humanos em metas definidas no orçamento federal. Mas o que as análises de acompanhamento demonstraram é que, na revisão do Plano Plurianual 2004-2007, sem consulta aos atores civis, o governo revisou sua política geral, suprimindo 30 programas dos 87 voltados para a proteção dos direitos humanos. Dos 57 programas mantidos, 17 tiveram menos de 10% da execução dos recursos previstos.

Por fim, é necessário ressaltar que os avanços e as mudanças empreendidas no período analisado não podem ser desconsiderados, especialmente porque se trata de uma política em movimento e porque a análise de um processo que estamos vivenciando impossibilita uma leitura e uma avaliação com distanciamento.

Um dos principais pontos positivos no processo que denominamos ascensão da diversidade foi a abertura à possibilidade de participação de grupos que até então não participavam da cena pública, bem como a pressão que tais grupos exercem em prol de outros estilos, critérios e políticas na construção de outro Estado.

RODRIGUES, Tatiane Consentino; ABRAMOWICZ, Anete. O debate contemporâneo sobre a diversidade e a diferença nas políticas e pesquisas em educação. Educação e Pesquisa., São Paulo, v. 39, n. 1, jan./mar. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022013000100002. Acesso em: 25 jul. 2019.

Habilidade da BNCC

9º ano
(EF09HI36) Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência.