Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano
Norberto Luiz Guarinello
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010
O historiador Norberto Luiz Guarinello, professor da Universidade de São Paulo (USP), comenta as formas de trabalho na Roma Antiga, especialmente a escravidão, no artigo Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano.
Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano
O Império Romano conheceu diferentes formas de trabalho compulsório, dentre elas uma que denominamos de 'escravidão'. Ou seja, ao contrário do mundo moderno, a escravidão antiga sempre conviveu com outras formas de dominação de pessoas e de exploração de trabalho dependente. No mundo antigo havia todo um espectro de situações de dependência entre a escravidão e a liberdade. A escravidão representava apenas uma das pontas desse espectro. De qualquer modo, em alguns períodos e lugares, foi a forma dominante por vários séculos, em particular na Itália romana entre os séculos II a.C. e II d.C. [...]
Nas sociedades que costumamos agrupar sob o nome [...] 'mundo antigo', seja nos grandes Impérios fluviais do Médio Oriente, seja nas cidades-Estado que depois se alastraram pelas margens do Mediterrâneo, nunca se constituiu um mercado abundante de mão-de-obra livre disponível para trabalhar para outrem. Daí advém que a carga de trabalho que excedia as capacidades de um grupo doméstico fosse sempre realizada mediante o uso de trabalhadores dependentes, ou seja, como dissemos, de trabalhadores submetidos a algum tipo de coação para trabalhar para outrem.
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Sociedades diferentes estruturam trajetórias distintas para seus escravos e, no mundo romano, essas trajetórias eram bastante amplas, ao menos potencialmente. Um escravo, ao nascer ou ser adquirido, entrava na casa de seu senhor, onde adquiria um nome e uma função. Podia ser destinado a trabalhar nas minas, talvez o pior dos destinos, ou podia ser mandado para uma propriedade rural, onde trabalharia muitas vezes acorrentado, distante e esquecido por seu senhor, num ambiente essencialmente masculino e organizado militarmente.
Já os escravos urbanos tinham trajetórias mais abertas. Podiam ser treinados em ofícios específicos e, muitas vezes, estabelecer-se independentemente, pagando uma taxa a seu dono. Podiam trabalhar na residência de seu senhor, ganhar sua confiança e passar, por exemplo, a administrar seus negócios, a gerir suas propriedades agrícolas, a comerciar em seu nome. Como ponto final da trajetória, podiam obter sua alforria, tornarem-se libertos e, até mesmo, cidadãos romanos, ainda que carregando a mancha da escravidão, da qual só seus filhos se libertariam plenamente.
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Além disso, como vimos, na ponta final de sua trajetória o escravo podia se tornar cidadão, mas não se tornava, por consequência, livre por nascimento. Passava a fazer parte de uma ampla categoria, a dos libertos. Estes, a despeito de se tornarem homens livres e mesmo quando adquiriam o estatuto de cidadão, permaneciam ligados a seus antigos senhores por obrigações que iam da prestação de serviços banais, como acompanhar seu ex-senhor ao centro da cidade, até o pagamento de taxas. De modo geral, pressupunha-se que mantivessem um respeito obsequioso frente a seus antigos senhores, seus 'patronos'. "Pai e patrono devem ser sempre respeitados e sagrados aos olhos de um liberto ou de um filho", afirmava o jurista Ulpiano no início do século III de nossa era (Digesto, 37, 15).
GUARINELLO, Norberto Luiz. Escravos sem senhores: escravidão, trabalho e poder no mundo romano. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 26, n. 52, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882006000200010. Acesso em: 25 jul. 2019.Habilidade da BNCC
6º ano
(EF06HI16) Caracterizar e comparar as dinâmicas de abastecimento e as formas de organização do trabalho e da vida social em diferentes sociedades e períodos, com destaque para as relações entre senhores e servos.