ALFREDO BOULOS JÚNIOR

Diversidade humana

Cibele Verani http://www.dbbm.fiocruz.br/ghente/ciencia/diversidade/

Brasil: uma biografia
Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling
Editora Companhia das Letras

Reflexões sobre diversidade étnico-racial e racismo

Os trechos a seguir refletem sobre a diversidade étnico-racial e o etnocentrismo, abordando o darwinismo, o racismo e o branqueamento da população brasileira no fim do século XIX. O primeiro excerto foi escrito por Cibele Verani, cientista social com mestrado em Antropologia Social pelo Museu Nacional. O segundo, pertence ao livro Brasil: uma biografia, das professoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling.

Diversidade humana

A humanidade sempre teve reações variadas pelas diferenças que percebiam entre si e os vários povos com os quais tinham contato. Guerreiros; viajantes; comerciantes; e lendas relatavam a seus pares, desde a mais remota antiguidade, as exoticidades dos demais. As reações eram e são variadas: desde o medo e a repulsa, até a curiosidade e o apreço [...].

Aspectos culturais e físicos imediatamente perceptíveis da singularidade dos “outros”, como vestimentas; ornamentos corporais; estatura; cor da pele, cabelos e olhos; e língua, ressaltavam a singularidade mais aparente. Os “costumes” mais estranhos, porém, sobressaiam aos que tinham a oportunidade de passar um certo tempo maior entre os “estrangeiros” e outras diferenças mais profundas entre os povos só poderiam ser apreendidas por um olhar mais detalhado: historiadores como Heródoto são tidos, por alguns, como os primeiros “antropólogos”, por se preocuparem com a organização das sociedades que descrevia, e não somente com os acontecimentos históricos, buscando assim uma razão, uma causalidade para os eventos [...].

As explicações sobre a diversidade humana sempre ressaltaram com mais ênfase os aspectos negativos dos “outros”, tendo como parâmetro as características positivas, físicas e culturais, dos povos sob cujo ponto de vista se pensava a diferença. Chega-se até a negar a qualidade de “humano” aos demais povos. Alguns exemplos: entre os povos indígenas brasileiros, a autodesignação, a rigor, enfatiza as qualidades de “seres humanos”; “gente”; “povo de Deus” de cada povo. E para os demais restam termos, no mínimo, desagradáveis, como “os agressivos selvagens”; “os comedores de carne de mamíferos ou de cobra” ou outra característica repulsiva. Já nos primeiros séculos da colonização luso-espanhola, o estatuto de “seres com alma” chegou a ser negado aos habitantes tradicionais das Américas, sendo objeto de discussões acirradas no âmbito da Igreja Católica.

A esta atitude a antropologia chama de “etnocentrismo”, uma atitude generalizada entre as sociedades humanas de valorizarem ao máximo como as melhores, as mais corretas, suas formas de viver; agir; sentir e pensar coletivamente.

Outros exemplos demonstram atitudes mais positivas em relação à alteridade, como na Primeira Carta ao Rei de Portugal, em que Caminha descreveu os “índios” como alegres e inocentes como crianças, sem notarem que estavam expondo suas “vergonhas”. Rousseau, um crítico da sociedade europeia, cunhou a ideia do “bom selvagem” e as cortes europeias deleitavam-se com a exoticidade animal e humana do “Novo Mundo”.

Segundo Maggie, foi a partir do século XVI, com a expansão colonial europeia, que caracteres como a cor da pele e outros traços físicos dos povos encontrados por exploradores passou a ser um aspecto privilegiado no imaginário europeu, como marcador das diferenças entre os povos. [...]

A noção de Raça, e sua associação de características biológicas; comportamentais e sociais foi, neste longo período que se estendeu até o século XX, a expressão científica do racismo colonial luso-espanhol. Na cultura luso-hispânica, este movimento teve desdobramentos importantes que incluíram, como no Brasil, a política de incentivo aos movimentos migratórios – desde a importação escravagista da África até as tentativas de “branqueamento” do povo brasileiro, no século XIX – e influenciaram os estudos raciais acadêmicos até meados do século XX. [...]

Às classificações da diversidade humana, baseadas na morfologia física e no conceito de raça, sobrepunham-se igualmente aspectos do comportamento e formas de pensar e sentir (aspectos sócio-culturais). O evolucionismo darwinista inspirara, inicialmente, uma hierarquização da diversidade humana e das “raças” em que a raça “branca” estaria no ápice da escala de evolução, devido à sua “superioridade” tecnológica e, acreditava-se, moral (etnocentrismo evolucionista que, na antropologia social ou cultural, teve também grande influência). [...]

Somente pouco antes da metade do século XX, quando autores como Franz Boas e Stocking levantaram as influências das condições ambientais na constituição das diversidades humanas, o que Santos chama de “segunda revolução darwinista” na Antropologia “Física” (biológica) se consolidou. O conceito de raça, nas ciências antropológicas, foi substituído então pela categoria “população”, construída a partir de critérios estatísticos e genéticos, cuja ênfase estava mais em seus aspectos dinâmicos, e na separação, por inspiração da biologia experimental, estes critérios dos extrabiológicos (socioculturais).

O clima do pós-guerra europeu, em fins da década de 40 e na dos 50, trouxe reações radicalmente contrárias aos fundamentos da eugenia levada ao extremo pela política nazista. Esta transição foi significativamente marcada na Assembleia da Unesco de 1949. Nesta Assembleia, Boas e alguns antropólogos, como Lévi-Strauss foram convidados a participar e exerceram influência no relatório final, contrária à ênfase na diversidade racial como explicativa de fenômenos socioculturais e ambientais. [...]

VERANI, Cibele. Diversidade humana. Fundação Oswaldo Cruz. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2019.

O “day after”. Populações negras após a abolição

[...] O Brasil foi o único país latino-americano a participar do I Congresso Internacional das Raças em julho de 1911, e enviou para Londres o então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda. Por lá, o cientista apresentou um artigo intitulado “Sur les Métis au Brésil”, com conclusões insofismáveis: “É lógico supor que na entrada do novo século os mestiços terão desaparecido no Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós”. O texto apostava, a partir de argumentos biológicos e sociais, num futuro branco e pacífico, com os negros e mestiços desaparecendo para dar lugar a uma civilização ordenada e crescentemente branqueada. Porém, a tese do cientista seria recebida de maneira pessimista no país, mas não pelos motivos que podemos imaginar. Ao contrário, julgava-se que um século era tempo demais para o Brasil se tornasse definitivamente branco.

Também o antropólogo Roquette Pinto, presidente do I Congresso Brasileiro de Eugenia, ocorrido em 1929, previa um país cada vez mais branco: em 2012 teríamos uma população composta de 80% de brancos e 20% de mestiços; nenhum negro, nenhum índio. A entrada conjunta e maciça dessas escolas fez com que o debate pós-abolição fosse colocado da questão jurídica do acesso à cidadania e igualdade, para argumentos retirados da biologia. A ciência naturalizava a história, e transformava hierarquias sociais em dados imutáveis. E o movimento era duplo: de um lado, destacava-se a inferioridade presente no componente negro e mestiço da população; de outro, tentava-se escamotear o passado escravocrata e sua influência na situação atual do país. Desenhava-se, assim, uma espécie de subcidadania, que mirava os habitantes dos sertões, mas também dos “cortiços”, tão bem descritos por Aluísio Azevedo, que, em 1890, publicou O cortiço, romance em que caracterizava tais aglomerados como verdadeiros barris de pólvora, não só por reunirem populações tão distintas – portugueses, espanhóis, ex-escravos, negros e mulatos livres – como por carregarem as mazelas dessa urbanização feita às pressas e às custas da expulsão de largos contingentes populacionais.

Os libertos conviviam, pois, com o preconceito do passado escravocrata, somado ao preconceito de raça. Não por acaso o escritor Lima Barreto afirmou em seus diários que no Brasil “a capacidade mental dos negros é discutida a priori, e a dos brancos, a posteriori”, e finalizou desabafando: “É triste não ser branco”.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel (Org.). Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 343-344.

Habilidade da BNCC

8º ano
(EF08HI27) Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas.